Macroscópio – Será possível desejar Bom Natal? Claro que é. Aqui fica a prova.
Hoje que entramos neste longo fim-de-semana que nos leva até ao Natal a tentação poderia ser ficar pelo tema que dominou o dia – os coletes amarelos à portuguesa –, mas o inevitável fiasco de um protesto convocado para esta data e com características tão vagas não me distrairão, já que os portugueses, sentissem o que sentissem, também não se distraíram por aí além. Prefiro antes desejar-vos Bom Natal e começar por fazê-lo com uma abordagem clássica em que, espero, muitos me acompanhem.
O texto de que parto foi hoje publicado pelo Wall Street Journal e é o seu Saturday Essaydesta semana. O que nele Terry Teachout se propõe fazer é explicar-nos How the Movies Invented Christmas, defendendo a tese de que “Most classic holiday films are secular, celebrating love and personal redemption, but a handful have managed to bring the divine into the Picture”. O seu ponto de partida é interessante e, mesmo sendo centrado na sociedade americano, julgo retratar uma realidade que nos é comum: “What is Christmas, anyway? For those who don’t celebrate the birth of Christ yet still trim a tree on December 25, it’s…well, complicated. Christmas is, after all, a specifically Christian holiday, albeit one briefly banned by the 17th-century Puritans (too much popery and public drunkenness), and at which the neo-puritanically inclined and the chronically grinchy persist in looking askance (too much unregulated joy). How, then, did it metamorphose into The Most Wonderful Time of the Year™, a commercially sanctioned opportunity for everyone in America, including Jews, Muslims, Buddhists, pagans, agnostics and atheists, to take the day off, eat to excess, sing sappy songs and spend money they may or may not have on gifts they may or may not feel naturally inclined to give? Chalk it up to Hollywood—and Charles Dickens.” O interessante é verificar como de facto, de filme em filme, se foi moldando uma certa imagem de Natal, a começar na mais clássica de todas, de alguma forma na matriz mais vezes glosada, a de Um Conto de Natalde Dickens, com a sua inesquecível figura do avarento. Contudo da selecção de filmes de Natal que nos é proposta o meu favorito é, sem sombra de dúvida, It’s a Wonderful Life (em português, Do Céu Caiu uma Estrela), de Frank Capra, com um inesquecível James Stewart no papel principal e que é um daqueles contos morais para a eternidade. Se puderem, e se me acompanharem nesta escolha, revejam-no por estes dias. Vale sempre a pena.
A minha segunda sugestão vai para um passeio virtual por 20 Extraordinary cathedrals in Europe, selecionadas pela National Geografic. Infelizmente não há nenhuma portuguesa, mas “From island monasteries sprouting from the sea to design-savvy contemporary chapels occupying capital cities”, trata-se de “20 cathedrals that should top your list of must-see sites in Europe”. Algumas são velhas conhecidas, outras verdadeiras surpresas, como a que reproduzo na imagem acima e que é finlandesa.
Depois desta introdução porventura mais espiritual e natalícia, aproveito estar no norte da Europa para sugerir um dos belíssimos trabalhos que The Economist sempre nos propõe no seu número duplo de Natal e fim de ano. Neste caso passo da Finlândia para a Noruega e para Remembering Norwegian heroism 75 years on, a reconstituição de uma corajosa operação de sabotagem contra os Nazis realizada num tempo muito sombrio para a Europa. Mas havia quem fizesse a diferença, como se recorda nesta magnífica evocação: “In a farmhouse a little way from Hardangervidda, a vast and wild plateau in central Norway, five elderly figures are gathered in the kitchen, warmed by a cast-iron stove, their feet in woollen socks. The table is set with coffee mugs, a lit white candle and a large plastic tub of home-made raspberry jam. Grey reindeer skins and tightly woven blankets drape the chairs. On top of the electric oven is a baking tray bearing six trout, each stuffed with spring onion and parsley. It might be any backwoods Norwegian home—except for the second table nearby, on which are placed several maps, black-and-white photos and a Thompson sub-machine gun.”
E quanto tempo é realmente 75 anos? Muito ou pouco? Em A Shadow Over Europe ficamos com a percepção de que pode ser muito mais tempo do que imaginamos possível e, sobretudo, desejável em termos do que é a memória dos povos. De facto neste trabalho da CNN dá-se conta de uma sondagem de acordo com a qual “One in 20 Europeans surveyed has never heard of the Holocaust. More than a quarter believe Jews have too much influence in business and finance. One in five believe anti-Semitism is a response to the everyday actions of Jews”.Ou seja, o anti-semitismo continua a ser uma realidade bem presente na Europa já que também “A third of Europeans said that Jews use the Holocaust to advance their own positions or goals.”
Continuando num registo de evocações históricas, aproveito para recomendar dois textos muito interessantes e informativos. O primeiro, de Abraham Denmark no Washington Post, recorda que 40 years ago, Deng Xiaoping changed China — and the world. só que a revolução que desencadeou pode estar a ser revertida, pelo menos em algumas frentes mais políticas, pelo actual líder chinês, Xi Jiping, que recentemente esteve em Portugal. De facto, “In 2018, just as China is reaping the long-term benefits of Deng’s policies, Beijing appears to be turning away from some of the very policies that made the country so successful. In a speech marking the 40th anniversary of reform and opening, Chinese President Xi Jinping made it clear that he would continue to tighten Chinese Communist Party (CCP) controls over the economy and society — even as he lavished praise on Deng and highlighted the successes of reform and opening. Under Xi’s leadership, China has also cast aside Deng’s eschewal of cults of personality, as new campaigns in Beijing have sought to elevate Xi’s stature and extend his ability to lead China indefinitely.”
O outro texto faz-nos recuar bastante mais, até 1918 e aos dias conturbador que Portugal viveu depois do assassinato de Sidónio Pais. Em O monárquico que foi Presidente da República: o almirante Canto e Castro, 1918-1919 o historiadorRui Ramos desenvolveu num ensaio publicado no Observador como esse militar chegou a um lugar que ocuparia durante dez meses, porventura suficientes para criarem um padrão: “Canto e Castro foi o protótipo da maior parte dos futuros Presidentes militares, sóbrios, rígidos, contrafeitos e com horror a tomar decisões que não constituíssem a simples sanção da correlação de forças. Não foram figuras heróicas, dispostos a mudar o curso da história, mas homens geralmente discretos, bem intencionados, um pouco oportunistas, aparentemente indecisos, que se esforçaram por preservar um resto de ordem e de paz nos momentos em que a sociedade portuguesa se dividiu, servindo os vencedores na esperança de os moderar.” De incontornável leitura, como sempre sucede com os ensaios de Rui Ramos.
Para o fim deixei duas sugestões muito diferentes, mesmo que ambas tenham como referência a América do Sul e ambas nos suscitem inquietações. A primeira é política e é uma entrevista que o diário espanhol El Mundo fez a um oposicionista venuzuelano, Lorent Saleh, preso y torturado cuatro años por el chavismo: “Buscaban anular todos mis sentidos”. Devo dizer que tive oportunidade de conhecer pessoalmente Lorent Saleh em Madrid poucos dias depois de ter sido libertado, de escutar um seu testemunho e de ficar profundamente impressionado pela força interior que irradiava. A descrição das condições em que esteve preso e resistiu a tudo ajudam a perceber a sua fibra – tal como dissipam dúvidas, se ainda as houvesse, sobre a natureza do regime venezuelano: “Cuando llegué me desnudaron. Me fotografiaron. Me raparon. Me pusieron un traje color caqui. Y empezamos a cruzar puertas. Gruesas. Blindadas. Hasta llegar a una sala cubierta de espejos y cámaras. Todo estaba limpio, impoluto. Sentí el poder. Absoluto. Totalitario. Atravesamos dos pasillos estrechos. Puertas y más puertas. De pronto oí un rugido, como de una turbina. La descompresión. Y luego otra puerta. La abrieron. Y entramos. Parecía el cuarto de refrigeración de un matadero. Había sólo siete calabozos. Todos vacíos. Me metieron en uno y cerraron las rejas. Miré a mi alrededor. La celda era pequeña, de dos metros por tres. Había una cámara en el techo, que seguía todos mis movimientos. Un timbre. Un colchón sobre una lámina de cemento. Y dos potes, uno para beber agua y otro para orinar. Y pensé: Uhhhhh…”
O outro texto que seleccionei encontrei-o no New York Times e é uma daquelas produções multimédia digitais que primeira grandeza. Para além disso também aborda um tema que me é caro, o destino das ilhas Galápagos, aquelas onde Darwin encontrou muitos dos elementos que lhe permitiram desenvolver a sua teoria da evolução e que afortunadamente eu já pude visitar. Revê-las na reportagem do New York Times As Seas Warm, Galápagos Islands Face a Giant Evolutionary Testé ao mesmo tempo fascinante (tenho ainda bem presentes aquelas imagens) e preocupante, pelo que nela se revela sobre os riscos que aquele santuário natural corre. Por exemplo: “Rising ocean temperatures mean less algae, the main source of food for marine iguanas. Scientists say they believe that the reptiles may reabsorb parts of their skeleton in order to decrease their size and increase their chances of survival on a smaller diet. Stress hormones may trigger the process, but little more is understood about how the iguanas adapt. Nevertheless, the changes could be central to their survival as El Niño cycles become more frequent.Evolution has led other animals in different directions, which could now prove fatal as ocean temperatures rise.”
Como já sucedeu muitas outras vezes antes de um fim-de-semana, sobretudo de um fim-de-semana prolongado, este Macroscópio propõem leituras longas mas sempre interessantes (espero eu) e que, mesmo quando desassossegam, não serão de todo desadequadas da quadra que vivemos. A todos desejo um Bom Natal, em conjunto com todos os seus.