Macroscópio – O que é que não estamos a ver para estarmos todos tão calmos?
Passei os dois primeiros dias desta semana em Bruxelas integrado num gruo de jornalistas e comentadores portugueses. Houve oportunidade para falar com altos responsáveis da Comissão e do Parlamento Europeu e pude confirmar a percepção que, lendo o que se vai escrevendo sobre o Brexit, tinha formado: ninguém tem a menor ideia de como vai acabar este processo; ninguém sabe como evitar um Brexit sem acordo; ninguém parece demasiado preocupado. Hoje, falando no Comité Económico e Social da Europa, Jean-Claude Juncker, confessou que sofria de “fadiga do Brexit” e não estava muito optimista quanto à possibilidade de se chegar a um acordo. Também hoje Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, aparentemente interessando em atirar achas para a fogueira, veio reafirmar a sua famosa frase sobre enviar para o inferno os responsáveis pelo Brexit, acrescentando ainda críticas ao Parlamento britânico – “Not all the behavior on the British side is rational on this issue. I must say that brutally.”
Bem sei que muitos acreditam num acordo de última hora – a data limite é 29 de Março, falta pouco mais de um mês –, mas a verdade é a única coisa que se tem por certa neste momento no Parlamento de Westminster é sobre o que este não quer, não sobre o que este quer. A questão decisiva é se a primeira-ministra May consegue neste curto espaço de tempo apresentar qualquer coisa de diferente do que apresentou em Janeiro e lhe valeu a maior derrota sofrida por um primeiro-ministro na Câmara dos Comuns nos últimos dois séculos. Para isso necessitaria de uma flexibilidade do lado de Bruxelas que não parece existir, já que aí o discurso é que cabe ao Reino Unido apresentar alternativas ao acordo que rejeitou – alternativas que não podem tocar nesse mesmo acordo. Digamos que é uma equação difícil de resolver.
Para se ter uma percepção do grau de pessimismo vale a pena ler a coluna desta semana de Wolfgang Münchau no Financial Times, que citarei com base na sua republicação em Portugal pelo Diário de Notícias. Pois em O que o Reino Unido deve fazer depois de um Brexit sem acordo este assumido europeísta como que atira a toalha ao chão e argumenta contra “a crença um tanto ingénua de que um Brexit sem acordo pode ser detido pela simples força de uma alteração parlamentar”, defendendo mais adiante que “A probabilidade de um Brexit duro permanece mais alta do que a maioria das pessoas pensa.” O resto do texto é sobre o que o Reino Unido deve fazer no caso de Brexit duro, sendo que até sugere que este pode ajudar o país a reequilibrar algumas das suas actuais distorções.
Se Wolfgang Münchau já está a escrever sobre o que se deve fazer no caso de um não-acordo é mesmo porque um não-acordo se tornou numa hipótese muito forte, senão mesmo na hipótese mais forte. Tão forte que está a desestabilizar por completo a política britânica, onde acaba de surgir um novo grupo político centrista, o Grupo Independente, formado por oito dissidentes trabalhistas a que depois se juntarem três dissidentes conservadores. Neste especial do Observador Cátia Bruno dá-lha umas primeiras Sete respostas sobre os dissidentes do Labour e sobre o que a sua saída representa, sendo que um dos politólogos com quem falou, Simon Fitzpatrick, analista especializado no Labour da consultora Cicero, lhe sublinhou que “o Brexit irá “testar as lealdades partidárias tradicionais” de alguns deputados”. Sendo que “num caso como o Brexit, nada está excluído. “Ainda é cedo para perceber se os eventos de segunda-feira são o início de um realinhamento mais profundo ou se isto vai evaporar se e quando um acordo para o Brexit for aprovado.” A incerteza em caso de no-deal é muita — até para os tradicionais partidos políticos britânicos.”
Esta análise é anterior à notícia da dissidência conservadora, esta totalmente motivada pela forma como Theresa May tem conduzido o dossier do Brexit, como se pode verificar lendo a carta de demissão das três deputadas tories. Aí se lê, por exemplo: “The final straw for us has been this government’s disastrous handling of Brexit. We find it unconscionable that a Party once trusted on the economy, more than any other, is now recklessly marching the country to the cliff edge of no deal. No responsible government should knowingly and deliberately inflict the dire consequences of such a destructive exit on individuals, communities and businesses and put at risk the prospect of ending austerity.”
Como nota Teresa de Sousa no Público, em A europeização da política britânica, “O “Brexit” é fundamental para encontrar uma explicação. A angústia sobre o seu desfecho está a atingir o seu ponto máximo à medida que se aproxima a data de saída sem que se vislumbre, sequer, uma pequena luz ao fundo do túnel. O grupo dos sete não poderia esperar mais um dia sem se distanciar de uma situação que consideram catastrófica, marcando posição na questão que hoje mais divide os dois grandes partidos britânicos. É uma jogada arriscada, que apenas fará sentido se conseguirem atrair não apenas mais deputados do seu partido, mas alguns conservadores dispostos a tentar impedir o que vêem igualmente como um desastre e mostrar, também eles, que não estão reféns da ala antieuropeia dos tories.” Como sabemos, uma parte deste caminho já foi percorrido (juntou-se um oitavo deputado trabalhista e três tories).
(Tudo indica que as divisões ideológicas entre os trabalhistas são muito mais profundas do que entre os tories, pois há muitos sectores que não apoiam o socialismo corbynista, condenam veementemente as derivas anti-semitas da liderança e, como destacava no Observador esta semana João Carlos Espada em A arrogância da ignorância, distanciam-se de declarações como as do “ministro-sombra” das Finanças, John McDonnell, que tratou Winston Churchill como “vilão”.)
Mas os problemas da União Europeia estão longe de circunscrever às possíveis consequências de um Brexit sem acordo – esse cenário em cima das próximas eleições europeias pode tornar ainda mais imprevisíveis os resultados e mais instável o Parlamento Europeu que delas resultar. No início da semana foi divulgada uma primeira previsão de como poderá ficar essa câmara baseada nas sondagens conhecidas país a país, uma previsão ainda grosseira que pode ser consultada aqui. O relatório completo aponta para que os dois principais grupos políticos, o democrata-cristão e o social-democrata, que hoje têm mais de metade dos eurodeputados, percam em conjunto quase uma centena de lugares. A maioria desses lugares irá para partidos de alguma forma críticos da construção europeia, tanto de esquerda como sobretudo de direita (ver gráfico acima).
No Politico, Ryan Heath e Maïa de La Baume falam por isso de um European Parliament’s watershed moment, em que uma minoria (por enquanto) eurocéptica seria capaz ou bloquear ou meso de influenciar decisivamente o funcionamento da máquina europeia: “Because of Brexit, few Euroskeptic groups are openly advocating leaving the EU, and so some have set their sights on upending politics in Brussels instead. Given their light presence in the Council and the antipathy of most civil servants in the Commission, the Parliament will provide Euroskeptics with the best opportunity to make their voices heard. Simply forming a blocking minority would be enough to gum up the works — stopping the next version of the Sargentini report on rule of law in Hungary, for example. Were Euroskeptics to actually engage in European politics, their role in Parliament could give them a real say over the future of the EU.”
Tudo isto ao mesmo tempo que Emmanuel Macron e Mateo Salvini lutam pela alma da Europa, algo que, mesmo que por enquanto seja mais uma luta de posições do que uma guerra aberta, é bem apanhado por Christopher Caldwell numa análise que escreveu para a Spectator, Europe’s culture clash: Macron vs Salvini is a battle over a continent’s soul. Ambos – com Salvini aliado a Di Maio em Itália – chegaram ao poder destruindo os partidos antes hegemónicos, só que por vias diametralmente opostas, e os dois representam duas visões opostas sobre o que deve ser o futuro da Europa. E o que está em causa é, no essencial, o seguinte: “Really there is no clash between Italy and France. There is a clash between the winners and losers of the process of ‘building Europe’. In France, in Italy, and everywhere else in Europe, there is a class war going on.” Até há pouco tempo dir-se-ia que o processo europeu era inquestionável – “The logic of the Maastricht Treaty is that eventually Europe will be a country that replaces the old nation states. If you think this way, as Macron day after day shows he does, then the institutions of the old nations are vestigial, soon-to-expire, worthless. Why protect or respect, for instance, diplomatic protocol? Why not use it to leverage yourself into a more advantageous position in the future order in which all politics will be continental?” –, mas a ascensão do eurocepticismo ou revoltas como as dos coletes amarelos deixam líderes como Macron em dificuldades, mesmo quando se recusam a abandonar a sua “grande visão” sobre o futuro da União Europeia.
Para já, no entanto, a verdade é que, como referi de entrada, o Brexit parece um problema sem uma boa solução, ao ponto de o mais estável dos sistemas políticos da Europa, o britânico, estar a ser sacudido até aos seus alicerces, o que também é tema da The Economist que chega esta sexta-feira às bancas. No seu editorial The fragmentation of the big parties reconhece-se que “The mass resignations also underline how far Brexit now trumps party loyalties. The Leave-Remain divide identifies voters and mps more than the old left-right one does. The threat of more resignations will strengthen the hand of Brexit moderates who have not left. The threat of more resignations will strengthen the hand of Brexit moderates who have not left. Mr Corbyn will be under pressure to show that the option of a second referendum, which is popular in his party, is genuine and not a meaningless ploy, as some suspect. To pacify rebellious Conservatives, including some in her cabinet, Theresa May, the prime minister, will be under renewed pressure to promise she will not leave the European Union on March 29th without a deal. The hardest question is whether this week’s resignations will lead to a realignment.” E mesmo que esse realinhamento possa levar ao aparecimento de um novo partido centrista e uma nova configuração do sistema político, dificilmente isso ocorrerá até 29 de Março, ou mesmo uns meses depois se a União aceitar um adiamento da data de saída do Reino Unido.
Como escrevi no título desta newsletter não sei bem o que é que me está a falhar para tudo parecer estar tão calmo. Mas pode ser defeito meu. Tenham boas leituras.