PORTUGAL | Discriminação de homossexuais na dádiva de sangue chega ao Tribunal Europeu
Cidadão francês questiona a regra, em vigor no seu país, de um ano de abstinência sexual obrigatória na dádiva por homens que tenham sexo com homens. Portugal revogou-a em 2016.
© REUTERS/Rafael Marchante |
Em França, de 1983 a 2016, os homens que têm sexo com homens estiveram impedidos de dar sangue. Desde julho de 2016, porém, uma nova norma permite-lhes a dádiva, mas apenas se certificarem que estão em abstinência sexual há um ano. A interdição aplica-se independentemente de o sexo praticado ser ou não seguro (ou seja, com preservativo), facto que Laurent Drelon, um ativista francês de 48 anos que desde 2004 foi várias vezes impedido de dar sangue devido à sua orientação sexual, sublinha na sua queixa, que acusa o Estado francês de discriminação baseada na orientação sexual.
“Independentemente de a relação sexual ser ou não protegida, e do caráter estável, ocasional, múltiplo ou anónimo do parceiro, ou ainda do estatuto serológico deste último, mantém a discriminação dos homens homossexuais e bissexuais na dádiva de sangue”, sublinha o pedido, que terá dado entrada há dias no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, prosseguindo: “A abstenção de um ano como condição da dádiva funda-se exclusivamente no género e da orientação sexual (…) e viola o direito à vida privada garantido pelo artigo 8 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.”
No final de 2017, o Conselho de Estado – que em França desempenha simultaneamente as funções do seu homólogo português e de Supremo Tribunal Administrativo – recusou o pedido de quatro associações para revogar esta mesma norma, considerando que ao “impor tal regra de abstinência o ministério da Saúde teve em atenção não a orientação sexual mas o comportamento sexual e portanto não adotou uma medida discriminatória ilegal”. No entanto, na mesma decisão, o órgão frisava que “segundo os dados oficiais a prevalência do vírus VIH é 70 vezes maior no universo dos homens que têm sexo com homens que no resto da população.”
Como em 2016 frisava a associação ILGA-Portugal, “a possibilidade de passar de uma exclusão permanente para uma exclusão de todos os homens que tenham tido sexo com homens no último ano equivale a uma exclusão permanente para qualquer pessoa com atividade sexual minimamente regular, mantendo exatamente a mesma lógica errada que norteou anteriormente a política relativa à doação de sangue.”
Sexo anal não é exclusivo dos homossexuais
Será a primeira vez que o TEDH vai apreciar normas relativas à dádiva de sangue por homens que têm sexo com homens, depois de em 2002 a queixa de um cidadão italiano, pelos mesmos motivos que fundamentam a de Drelon, ter acabado por não ser apreciada. Tal sucedeu porque o governo italiano mudou as regras da seleção de dadores em 2001, acabando com a exclusão liminar de homens que têm sexo com homens. Marta Ramos, a diretora-executiva da ILGA-Portugal, desconhecia a entrada do caso de Drelon no TEDH e, considerando-o “importante”, mesmo se a decisão não deverá fazer diferença para Portugal.
É que se as normas de seleção de dadores foram até muito recentemente idênticas às que vigoram em França, desde 2017 que o período de abstinência de um ano deixou de ser exigido a homens que fazem sexo com homens. Esta alteração resultou de décadas de ativismo e protestos contra normas consideradas preconceituosas e não científicas.
A primeira vitória foi ocorreu em 2010, quando a pergunta sobre a orientação sexual saiu dos questionários entregues aos prospetivos dadores. Mas cinco anos depois, em abril de 2015, o então presidente do Instituto Português de Sangue, Helder Trindade, em audição na Assembleia da República, reconheceu que um homem que assumisse ter sexo com homens continuava a ser excluído de dador. “O contacto sexual de homens com homens é definido como um fator de risco. A homossexualidade não é assumida como fator de risco”, disse Trindade, que invocou dados do Centro Europeu de Controlo de Doenças segundo os quais “a prevalência do VIH é bastante mais elevada nos homens que fazem sexo com homens”. Contrariado pelos partidos de esquerda, que frisaram não serem as práticas sexuais entre homens, nomeadamente o sexo anal, exclusivas das relações homossexuais, Trindade demitir-se-ia em setembro desse ano, depois de a Direção Geral de Saúde ter emitido uma nova norma de seleção de dadores que permitia a dádiva por homens que têm sexo com homens desde que estivessem em abstinência nos 12 meses anteriores à dádiva – exatamente o que estará agora em causa no TEDH.
Finalmente, em setembro de 2016 a DGS exarou uma nova regulação, na qual a expressão “homens que fazem sexo com homens” desapareceu, passando a aludir-se a “participação em práticas homossexuais ou heterossexuais anais”. Este facto foi saudado pela associação ILGA-Portugal: “Desaparece assim a generalização abusiva de comportamentos de uma população com uma enorme diversidade de práticas, permitindo um enfoque nos comportamentos de risco e não só mantendo como, na realidade, reforçando a preocupação com a qualidade do sangue recolhido.”
Discriminação acabou em Portugal?
Estas novas normas entraram em vigor em 2017 e, de acordo com Marta Ramos, diretora executiva da ILGA-Portugal, “desde o ano passado que a associação não recebe qualquer queixa de alguém que se sinta discriminado na dádiva. Também perguntamos às pessoas que vão dar sangue o que acontece e aparentemente já não se fazem perguntas sobre a orientação sexual da pessoa mas sim sobre as práticas sexuais. E não há exigência do período de abstinência.” A ativista lembra no entanto que o ministério da Saúde anunciou em 2016 um estudo “para avaliar o nível de risco na dádiva de homens que têm sexo com homens no contexto cultural e social português, mas que ainda não avançou.”
Este estudo pretenderá, de acordo com o que tem sido noticiado, averiguar da resposta q três questões fundamentais. A primeira é se existe maior risco, em Portugal, de transmissão, por transfusão de sangue, de doenças infecciosas no grupo de dadores “homens que praticaram sexo com outros homens” [HSH] do que no grupo de dadores “homens que praticaram sexo apenas com mulheres”; a segunda, qual o acréscimo no risco infeccioso para o HIV que deriva da alteração do critério de elegibilidade de dadores de sangue para comportamento HSH; e a terceira é sobre o modelo de avaliação do risco a desenvolver em Portugal. O tipo de perguntas
Fonte: DN / Fernanda Câncio
26 Junho 2018
__________________________________
Comentário:
– Sobre esta polémica vamos colocar o seguinte cenário: se o leitor destas linhas, se encontra na eminencia de receber uma transfusão de sangue, estando ao seu lado dois lotes de sangue com a seguinte identificação: Lote 1, sangue recolhido a um dador regular com estilo de vida saudável, nada de comportamentos de risco, parte-se do pressuposto que não é homossexual assumido, enquanto que no Lote 2 consta uma identificação sobre o sangue recolhido a um dador homossexual comprovadamente assumido, qual dos dois lotes escolhia? O primeiro ou o segundo?
A resposta diz respeito à consciência de cada um.
J. Carlos