Macroscópio – O Brexit já era uma confusão. Agora tornou-se na “mãe de todas as confusões”
“The mother of all messes”. É impossível não citar a capa da edição da The Economist que chega esta sexta-feira às bancas. O que há muito se antecipava aconteceu: o acordo negociado por Theresa May com a União Europeia foi chumbado pela maioria dos deputados britânicos. Não houve adiamentos da votação nem novas cartas vindas de Bruxelas que lhe mudassem um destino. O que surpreendeu foi a margem pela qual o acordo foi rejeitado: 432 contra 202. Não há memória de uma derrota desta dimensão sofrida por um primeiro-ministro em funções. Mesmo assim May não desistiu e, dois dias depois, enfrentou uma moção de censura apresentada pela oposição trabalhista e sobreviveu. O que significa que continuará no nº10 de Downing Street. O que implica que o futuro do Brexit continuará a passar por ela, pelo menos por enquanto. Ninguém sabe é por quanto tempo. Porque ninguém sabe o que pode acontecer.
“I cannot recall Britain falling so low. The Suez debacle in 1956? As supplicant at the door of the IMF 20 years later? These were moments of national shame. They were moments also that passed. The impact of Brexit has been cumulative. Each chapter in the story heaps on more humiliation. However it ends, the damage will not be quickly undone.” As palavras são de Philip Stephens, do Financial Times, onde defendeu que Theresa May has one last throw of the Brexit dice. Essa última jogada implicaria, contudo, uma mudança profunda de orientação e prioridades: “All this requires Mrs May to set aside her vanity to behave as a prime minister rather than a party leader — to demonstrate the political leadership of the convener. Attempts to preserve Tory unity have been tested to destruction. An agreement with Brussels that serves the national interest means leaving behind the kamikaze Brexiters in order to test cross-party support for continued membership of the EU customs union and of the single market.”
Este caminho defendido pelo colunista do Financial Times é apenas um dos possíveis, sendo que nos últimos dias analistas e jornalistas se têm afadigado em alinhar todos os cenários minimamente viáveis. No Observador esse trabalho foi feito por Cátia Bruno, em dois especiais, um publicado logo depois do chumbo do acordo – O acordo para o Brexit foi mesmo chumbado. E agora? Os cinco cenários (ainda) em cima da mesa – e um já depois de Theresa May ter sobrevivido à moção de censura – Brexit. Guia para Theresa May montar um plano B em três dias. Este último dividia-se em três partes:
- Primeira decisão: rejeitar saída sem acordo para se sentar à mesa com o Labour? “Temos três dias para a empurrar”
- Adivinha quem vem jantar? Se May não ceder, apenas o DUP e os tories
- Parlamento tem palavra a dizer no Plano B. Mas UE é rainha e senhora nesta negociação
Outros três artigos que, a meu ver, sintetizam bem os vários cenários são os do New York Times, May’s Brexit Deal Failed. What Happens Now?, com uma apresentação gráfica muito sugestiva, o da edição europeia do Politico, Brexit: What now?, e uma análise mais jurídico-constitucional publicada na Prospect, What will happen next? Brexit and the parliamentary possibilities, na qual o professor Sionaidh Douglas-Scott analisa a viabilidade dos diferentes cenários, num texto com outra densidade e profundidade.
Voltando à The Economist, o seu cenário preferido é a realização de um novo referendo: the people themselves must decide—in a second referendum. Eis uma parte da sua argumentação: “The path to any deal, whether Mrs May’s or a revamped one, must involve the voters. The give and take that Brexit requires mean that no form of exit will resemble the prospectus the public were recklessly sold in 2016. It may be that voters will accept one of these trade-offs; it may be they will not. But the will of the people is too important to be merely guessed at by squabbling mps. Parliament’s inability to define and agree on what the rest of the country really wants makes it clearer than ever that the only practical and principled way out of the mess is to go back to the people, and ask.”
Mas um segundo referendo, seja ele qual for, implica enormes riscos, como bem se recorda no New York Times, na sua coluna/newsletter The Interpreter – The Big Risks of a Second Brexit Referendum. É um texto onde se enumeram cinco problemas, e sobretudo se fundamentam muitas dúvidas sobre a bondade de voltar às urnas. Eis esses pontos:
- Referendums are not particularly democratic
- A second referendum could undermine faith in British democracy
- The problem of what to put on the ballot is nearly unsolvable
- The result is a coin toss, which could force the least popular result
- There are terrifying risks for every constituency
Da argumentação, deixo esta pequena passagem: “One reason that political scientists are so skeptical of referendums is that leaders almost never call them because they want to empower the people or strengthen democracy. Quite the opposite. Leaders usually intend them as a sort of performance to give the appearance of democracy happening.”
Ler estas palavras traz-nos inevitavelmente à memória o papel desempenhado em toda esta confusão pelo anterior primeiro-ministro, David Cameron, e por isso achei interessante esta reflexão de Lluis Bassets, do El Pais, que faz alguma justiça a Theresa May. Em Coraje, obstinación e infortunio ele escreve, por exemplo, que “La fortuna suele estar mal repartida. Hay gobernantes que tropiezan con ella con insólita frecuencia y no saben aprovecharla, mientras que otros se arrastran toda la vida sin que ni por asomo les sonría la suerte, y en cambio persisten obstinados y valientes en sus combates en pos de la oportunidad definitiva que les sirva para alzarse con el triunfo. Entre los primeros se halla David Cameron —probablemente uno de los gobernantes más frívolos e irresponsables de una época pletórica de gobernantes frívolos e irresponsables—, al que la fortuna le ha regalado casi todo, desde su origen familiar y su formación elitista hasta la oportunidad de convocar un referéndum arriesgado sobre la independencia de Escocia y ganarlo para la causa del mantenimiento de la unión. Entre los segundos se cuenta Theresa May, tibia partidaria de mantener a su país integrado en la UE y obligada a gestionar el Gobierno conservador tras una derrota ajena y la posterior deserción de sus responsables, empezando por Cameron, el primer ministro que convocó otro referéndum, este sobre el Brexit, porque creyó que se puede volver a vencer por el mero hecho de haber vencido.”
De resto, como recordava no Público Teresa de Sousa, as condições são próprias de A tempestade perfeita. E não apenas pela forma como se dividiram os conservadores e falhou May, mas também pelas características da actual liderança trabalhista. Como ela escreve, “Com a votação de terça-feira no Parlamento britânico, o Reino Unido mergulhou ainda mais fundo numa crise de identidade para a qual só dificilmente se pode imaginar um fim que lhe devolva o estatuto europeu e internacional que ainda mantém. A pergunta recorrente é: como foi isto possível? A resposta talvez só possa ser encontrada em torno da palavra Europa e na rara coincidência temporal nos dois grandes partidos – Tory e Labour – de fortes correntes eurocépticas pouco disponíveis para apresentar uma alternativa clara a um abandono da União, cujo sentido político e estratégico se perdeu ao longo dos últimos dois anos.”
Mesmo assim, a verdade é que, mesmo considerando o voluntarismo de colunistas como o já citado Philip Stephens, e não indo pelo caminho do referendo, a devolução do protagonismo ao Parlamento, ou de um ainda maior protagonismo, é o caminho defendido por editorialistas como os do Wall Street Journal, que em Accountability for Brexit defenderam que “A defeat for Theresa May leaves Parliament in charge”. Em concreto “The larger point is that any Brexit solution now must run through the Parliament. Mrs. May’s error was to approach Brexit as a matter to be decided by the country’s executive leadership and then rubber stamped by lawmakers—which, ironically enough, is how the EU practices democracy. Brits who voted to “take back control” wanted none of that, and now they’ve got the opportunity for their representatives to find some manner of Brexit (or otherwise) that Britain can accept. As more than one famous British ruler would have said, get on with it.”
Algo porém parece estar adquirido, na opinião dos que defenderam um Brexit mais radical, como muitos colunistas do Telegraph. Hoje um dele, Jeremy Warner, de alguma forma deixava cair a toalha ao chão em The Brexit dream is over, or so say the markets, and they are probably right: “The Brexit dream is over – in any meaningful sense, at least. That was the clear and unambiguous message from markets this morning, which cynically marked the pound up sharply in response to Britain’s seismic political crisis, and they are probably right. You might have thought the correct response would have been the other way around, but no, markets are betting that Theresa May’s crushing defeat makes a no-deal Brexit less likely, and either a much softer Brexit – Norway Plus – or no Brexit at all, the overwhelming odds-on end game.”
Ao mesmo tempo é possível de desta “mãe de todas as confusões” resulte também uma paisagem política diferente. O sistema político britânico é muito estável, favorecido por um sistema eleitoral de círculo uninominais, mas em The great rescrambling of Britain’s parties a The Economist discutis a hipótese de o país estar a assistir a uma repetição das grandes transformações por que passou na década de… 1850. Eis uma passagem desse interessante artigo: “Amid the chaos, the political landscape is shifting. In normal times political talent gravitates to the front benches. Today there is more talent on the backbenches. Mr Corbyn has acted as a talent-repulsion field and Mrs May, never a great promoter of able ministers, has lost 11 members of her cabinet in the past year. The whipping system is at breaking-point as the enforcers lose their ability to bribe and bully and political factions organise themselves via WhatsApp. A few years ago political journalists dreamed of finding the keys to the whips’ offices. Now they dream of finding the electronic keys to WhatsApp groups. Grassroots politics is becoming more important. The demand for a second referendum came initially from disgruntled voters rather than from MPs. At the same time, Brexit supporters in Tory constituencies are pressing wavering MPs to honour the Brexit vote.”
Termino reencaminhando-vos para alguns eleitores comuns, mais exactamente quatro britânicos com quem Cátia Bruno falou para um especial do Observador publicado ainda antes da votação – Um pescador, uma imigrante, um agricultor e um padre. As histórias de quatro vidas suspensas pelo Brexit – mas onde também se captura esta ideia de que o país vive mergulhado numa trabalhada de que não sabe como sair: “Kevin continuará a ouvir as notícias no seu pequeno rádio, enquanto alimenta as ovelhas. Mas a sensação de que não compreende nada do que se está a passar — e de que, no final, ele é que pode sair prejudicado — continuará a existir. “Acho que estamos todos… Conhece a expressão inglesa punch-drunk? Estamos todos meio bêbados com esta confusão toda.”
O que é compreensível. De resto, na esperança de que este Macroscópio tenha ajudado a tornar mais compreensível esta “awful mess”, despeço-me com votos de bom descanso. E espero poder regressar amanhã com novo tema, este com implicações nacionais (e não, não será o que se está a passar no PSD).