Macroscópio – Roma, Bruxelas, Londres: sonâmbulos ou funâmbulos?
É muito curioso ver como os discursos solenes sobre os riscos do nacionalismo proferidos nas cerimónias do centenário do fim da I Guerra Mundial receberam o aplauso geral, verificar que ninguém hesita em condenar tudo o que tiver o mais leve aroma de populismo mas, ao mesmo tempo, parece haver quase uma indiferença geral perante desenvolvimentos noticiosos que podem provocar choques verdadeiramente cataclísmicos. Por estes dias estamos a assistir a algo inédito: dois países europeus, e logo dois dos grandes, estão em rota de colisão com as instituições europeias. A Itália por causa do seu Orçamento. E o Reino Unido por causa do Brexit. O potencial para alguma coisa correr mal é imenso, e se isso acontecer o potencial para uma nova vaga populista difícil de imaginar. Custa a entender que não seja maior a preocupação.
Não vou hoje desenvolver o caso italiano, mas o que está a suceder é um Governo que não depende dos empréstimos de nenhuma troika (como dependia a Grécia) ter resolvido cumprir o seu programa eleitoral em vez de obedecer às ordens da Comissão Europeia. Um dia tinha de acontecer, pois um dia haveria em que um parlamento nacional reivindicasse a sua soberania orçamental, sem submissão ao visto prévio dos funcionários de Bruxelas.
No Reino Unido aquilo a que iremos assistir é a um exercício semelhante: o Parlamento de Westminster, o mais antigo do mundo, vai decidir se aceita ou não um tratado que regula do Brexit de acordo com o qual não lhe serão devolvidos todos os poderes soberanos de um Parlamento por um período de tempo indefinido. Quem ontem seguiu a tumultuosa sessão durante a qual Theresa May teve de se explicar perante a câmara (que o Observador seguiu em directo) percebeu que a primeira-ministra não conta, neste momento, com uma maioria capaz de aprovar o acordo a que chegou na Europa. De acordo com as contas do Guardian (que podem ser vistas em Can you get May’s Brexit deal through parliament?e que se traduzem no gráfico que reproduzo abaixo) faltar-lhe-ão mesmo uns 80 deputados. Mesmo assim é esse acordo que os líderes europeus deverão aprovar na sua cimeira de 27 de Novembro, não sei se na expectativa de que assim verguem a opinião dos deputados britânicos. Ou façam mudar o sentido da opinião pública, muito desfavorável aos termos do acordo.
Seja lá como for há um interessante texto de Martin Kettletambém no Guardian que explica como tudo pode passar-se no Parlamento de Westminster. Em Theresa May has made her move. Now MPs must take back control ele conta que, esta quarta-feira, enquanto o foco das atenções estava na reunião de May com o seu gabinete, nos bastidores do Parlamento reunia-se uma comissão para preparar a sucessão de votações que deverão ser necessárias caso chumbe a primeira de todas, a destinada a aprovar o acordo do Brexit. Escreve ele: “Meanwhile, Westminster’s second important meeting was going ahead under the radar. MPs have long been promised a “meaningful vote” on the package that May secured this week. Wednesday’s meeting of the Commons procedure committee will have done much to shape how that will work. At issue is whether parliament will have the tools and the will to take control of the Brexit decision and reshape it in the way the parliamentary numbers suggest is possible and that so many in and beyond Westminster want and expect it to do.”
Uma democracia a funcionar, com todas as suas negociações e incertezas. Na verdade se a percepção de quem assistiu aos debates desta quinta-feira é de que há poucas ou nenhumas hipóteses de o acordo ser aprovado, a revista The Economist encontrou quem fizesse outras contas. Na sua peça de abertura, The beginning of the endgame for Brexit, depois de explicar como se alinham os diferentes grupos, escreve-se: “Yet it is hard to see these arguments swaying enough mps to swing the vote in favour of the deal. Nicky Morgan, a former Tory minister and chair of the Treasury select committee, puts the odds of success at 50-50. That they are so low is largely Mrs May’s fault. Had she been more honest earlier about the basic trade-off between securing better access to the eu’s market at the cost of being bound by most of its rules, she might have made her compromise more appealing.”
Bem, já me demorei um pouco neste Macroscópio e ainda não dei boas referências para orientar quem procura conhecer o essencial, a começar pelo essencial do acordo. Ora podem os leitores encontrar duas boas sínteses em Fronteiras, emigração, dinheiro, comércio e agricultura. O que diz, afinal, o acordo prévio para o Brexit?, de Mariana Fernandes, um especial do Observador que pode ser complementado com um guia elaborado pela edição europeia do Politico, 10 things you need to know about the Brexit deal. Menos sobre o conteúdo propriamente dito, mas antes sobre como se chegou lá, ou pela mão de quem aquelas 570 páginas foram sendo buriladas, a Cátia Bruno escreveu outro especial do Observador com os retratos dos dois principais protagonistas das negociações de bastidores: Sabine Weyand e Olly Robbins. Quem são os pais deste acordo para o Brexit?
Voltando ao destino do acordo o primeiro texto que hoje li deixou-me verdadeiramente surpreendido. Tratou-se da coluna de opinião de Philip Stephens no Financial Times, um jornal europeísta que sempre combateu o Bresit, cujo título não podia ser mais incisivo: Parliament should reject Theresa May’s rotten Brexit deal. Um dos seus argumentos é que “Mrs May presents a false choice between her deal and Britain walking over the cliff edge to Brexit. There are plenty of other options. Most obviously, parliament could instruct the government, whether led by Mrs May or someone else, to request that the EU stop the clock on the negotiations to allow Britain to formulate a more coherent position. They would not be pleased in Berlin, Paris and Brussels, but this would be a request they could scarcely refuse.”
No mesmo Financial Times Martin Wolf escrevia May’s terrible deal has united the UK in horror, enquanto na arena política se via Tony Blair a defender o chumbo do acordo fazendo coro com… Boris Jonhson. Os argumentos e as motivações não são os mesmos, mas neste coro tive alguma dificuldade em encontrar vozes dissonantes –tal como May na sua ida ao Parlamento, pois durante toda a primeira hora de debate nem um só deputado se levantou a defendê-la. Curiosamente, ou talvez não, o Wall Street Journal saiu em defesa do acordo, chamando-lhe, em editorial, The Best Bad Brexit Deal: “May’s withdrawal pact from the EU is lousy but is the only game in town”. A tese do editorial é que os adversários do acordo nunca propuseram uma solução viável para a questão mais espinhosa do acordo (a fronteira da Irlanda) – “If Tory Brexiteers have a better idea to solve the Irish problem, it’s the best-kept secret in Britain” – pelo que se querem rejeitar o acordo têm de se assumir como alternativa de poder: “If Mr. Johnson or other Tories are serious, then they could try to defeat Mrs. May’s plan and deal with consequences that probably include a hard Brexit without a deal and an election that could lead to a Labour victory. The best of the bad options now is to accept Mrs. May’s plan, warts and all, and then focus on negotiating a better permanent free-trade relationship with Brussels and better economic policies at home.”
Por uma daquelas coincidências felizes que por vezes há no jornalismo o Observador tinha há muito tempo aprazada para ontem uma entrevista com um dos principais ideólogos do Brexit, o eurodeputado Daniel Hannan. A conversa que ele teve com Edgar Caetano tornou-se por isso duplamente interessante – até porque ele também foi muito directo: “Este acordo é tão mau que prefiro que haja novo referendo”. Eis o essencial do seu argumento: “Com este acordo, a ideia é que ficaríamos integrados nesta união aduaneira sem qualquer poder de decisão sobre que regras ela deve ter. A UE passaria a controlar 100% da nossa política comercial. E em Bruxelas o que se comenta é que ficaria assim para sempre…”
Politicamente, defende Matthew Parris no Times, If Theresa May clings to this Brexit deal, she is doomed (“As I will now. Theresa May’s deal is sinking, and unless she can detach herself from it she is likely to sink with it. I simply cannot see how she or anyone else can plausibly recommend a draft agreement that the man who helped to draft it, the former Brexit secretary Dominic Raab, now says is no good.”), mas isso será a história das próximas semanas. A história deste período, a de como um referendo foi convocado, votado e depois o seu resultado subvertido, essa poderá ser outra e a lição aquela que Rod Liddle tira na Spectator: May’s deal proves one thing: the establishment always wins. O cronista começa com uma evocação histórica curiosa – ”Peasants’ Revolts tend not to work out too well in this country, for the peasants. I suppose that is why we have so comparatively few of them.” – para depois estabelecer um paralelo entre as revoltas do passado e o que descreve como a revolta de 2016, quando as classe baixas também votaram no referendo do Brexit contra a vontade das elites urbanas. Só que… “And we ought to face it: these voices of the establishment, the liberal establishment, have won. It’s as brutal a victory in a way as that which saw Wat Tyler stabbed to death in Smithfield in June 1381: a continual fugue of outrage, disinformation, lies and chicanery, broadcast by those with vested interests. And, of course, a grotesque betrayal, intended all along. Because there are no palatable options on the table now for those who voted Leave.”
O colunista do Telegraph Ambrose Evans-Pritchard esteve entre os que então votaram Leave e na sua primeira reação ao acordo não faz um juízo definitivo do seu conteúdo, mas ao contrário da generalidade dos analistas considera que no Continente se estão a subestimar os riscos de um “hard Brexit”. Em A rejection of the Barnier Brexit plan would hurl all Europe into existential crisis escreve o seguinte: “My view is that the financial shock of a no-deal Brexit would crystallize mounting risks and hurl the eurozone into an existential crisis. Academic trade models do not capture the multiple channels of contagion, obvious to any Mayfair hedge fund dealing with capital flows. Some 80pc of Europe’s capital markets are in London. Confidence would be shattered. The derivatives markets would seize up. The wealth effect of a stock market crash would cause eurozone consumption to buckle. Unless the EU backed off very quickly, the cross-Channel supply chains of European multinationals would break down. Airbus would have to suspend its European operations. Germany’s 750,000 annual car sales in the UK would collapse. Britons have been told for two years that a no-deal Brexit would bring the Four Horsemen of the Apocalypse – as well it might – but the European public has not been alerted to the big risks they face in any comparable way. The insouciance has been astonishing. This asymmetry has psychological implications.”
Não é por acaso que termino com esta citação – é porque ela me permite regressar ao alerta com que abri esta newsletter. Se porventura este processo terminar num choque frontal entre uma União Europeia inflexível e um orgulhoso Parlamento britânico senhor da sua soberania, tudo isto a meses ou semanas de umas eleições europeias de resultado imprevisível, quem põe as mãos no fogo pelas consequências? No caminho para a primeira guerra os líderes europeus portaram-se como sonâmbulos. Há quem os veja hoje mais como funâmbulos.
E por hoje é tudo, e não é coisa pouca. Tenham bom descanso.