Opinião Ana Gomes está de parabéns
A verdade é que José Júlio Pereira Gomes optou por escapar ao escrutínio do Parlamento e à abertura dos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
João Miguel Tavares
Após a enorme polémica gerada em torno da missão diplomática portuguesa durante a crise timorense de 1999, o embaixador José Júlio Pereira Gomes comunicou ao primeiro-ministro a sua “indisponibilidade para aceitar o cargo” de secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa. Ainda que a versão oficial para esta renúncia seja a “salvaguarda da dignidade do cargo”, e ainda que Pereira Gomes garanta estar “de consciência tranquila”, a verdade é que ele optou por escapar ao escrutínio do Parlamento e à abertura dos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. É difícil conceber que tivesse tomado tal decisão se realmente acreditasse ter a razão do seu lado. Donde, Ana Gomes está de parabéns pela frontalidade que demonstrou – e todo este processo, pela sua raridade, merece ser elogiado e comentado.
Comecemos pelo aspecto mais negativo: o governo convidou para o cargo José Júlio Pereira Gomes sem ter feito o trabalho de casa e escrutinado o seu passado. (Outra hipótese menos simpática seria admitir que o governo sabia de tudo e queria que fosse assim, exactamente para ter uma personalidade fraca e manipulável à frente das secretas – mas deixemos de lado tal hipótese.) Chefiar a missão portuguesa em Díli durante os meses quentes de 1999 não é propriamente uma nota de rodapé no currículo de um diplomata – é bem capaz de ser a coisa mais importante que fez na vida. O desconhecimento, por parte do governo, da forma como ele desempenhou tais funções (António Costa admitiu que ignorava a questão de Timor) é indesculpável. Tal como é indesculpável, já depois de a polémica se ter levantado; já depois de Ana Gomes ter falado; já depois de os jornalistas Luciano Alvarez e José Vegar terem dado testemunho do que se passou; já depois dos socialistas João Soares e Manuel Alegre terem tomado posição contra uma decisão do seu governo; já depois de tudo isto, vir o ministro Augusto Santos Silva garantir, com o ar mais sério do mundo, que Pereira Gomes era “uma muito boa escolha”. Não, não era – como se viu.
Este é o lado mau do caso. Mas há um lado óptimo, que faço questão de sublinhar aqui, até porque estou sempre a protestar contra a ausência de uma cultura de escrutínio em Portugal. Desta vez, o escrutínio existiu, e pelas melhores razões: não por causa da trica política, mas para realmente se ficar a saber se um alto funcionário do Estado estaria à altura do cargo que lhe foi atribuído. Para isso, fez-se um esforço de memória. Valorizou-se o percurso e o carácter de quem trabalha para o Estado. Analisaram-se os deveres de um diplomata em situação de perigo. Não se passou uma esponja sobre o passado. Viram-se várias pessoas tomar posição, por honestidade intelectual, contra os interesses do seu próprio partido. E, no final, este levantamento conjunto de vozes teve consequências – José Júlio Pereira Gomes afastou-se do cargo e a chefia das secretas saiu valorizada.
As secretas portuguesas são frequentemente ridicularizadas, pelas piores razões. São alvo de anedotas e de suspeitas, são notícia de fugas de informação, nunca conseguiram formar uma estrutura independente e, demasiadas vezes, aparecem como o braço oficioso do governo em funções. É péssimo, até porque no actual contexto de terrorismo internacional as secretas não servem para brincar ao 007. Esperemos, pois, que o caso Pereira Gomes tenha esta dupla utilidade: tornar as secretas mais exigentes e o escrutínio público mais apertado.
Jornalista
Público