Do sociológico ao psicológico

24/12/2016 0 Por Carlos Joaquim
O
escritor e dramaturgo austríaco, Hugo Laurenz August Hofmann, que
assinava suas obras com o pseudónimo de Hugo von Hofmannsthal, um
dos expoentes da brilhante geração de artistas do seu país em fins
do século XIX e que, entre outras coisas, foi amigo pessoal,
parceiro e colaborador do compositor alemão Richard Strauss,
escreveu, em um de seus ensaios: “Os males que afligiam a
humanidade tenderam a se deslocar do domínio público e sociológico
para o privado e psicológico”.
Concordo,
mas apenas em parte, com essa observação. Não houve nenhum
deslocamento na natureza dos problemas que afectam o homem neste raiar
de novo milénio. Isso poderia, até, ter acontecido, e por
curtíssimo período, na época em que o escritor fez essa afirmação.
Hoje, o que ocorre é um acúmulo de males. Ou seja, os de domínio
público não foram sanados e, por isso, se agravaram e, a eles,
vieram se juntar os desajustes individuais, privados e psicológicos.
Creio
que sequer preciso fundamentar em provas essa constatação, tão
óbvia ela é para pessoas minimamente informadas e com capacidade
mediana de observação. Quando Hofmannsthal escreveu seu ensaio, a
humanidade não havia, ainda, conhecido os horrores das duas guerras
mundiais, que deixaram, somadas, um número estimado de mais de 50
milhões de mortos, pelo menos o triplo dessa cifra de feridos e
prejuízos materiais tão grandes, que nunca puderam ser
quantificados (sequer aproximadamente).
Não
havia ocorrido o maior massacre da história, com o lançamento das
bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki, que, literalmente,
incineraram, em questão de minutos, edifícios, monumentos, praças,
casas etc. e cerca de 200 mil pessoas. Foi, até hoje, o ataque mais
pavoroso, o ato de maior insânia e insensibilidade praticado pelo
homem contra seus semelhantes.
As
duas guerras mundiais deixaram a Europa, berço da civilização, em
frangalhos, em escombros, em dantescas ruínas, tanto política,
quanto económica, social e até moralmente. A economia do continente
se recuperou em pouco tempo, é verdade, graças ao famoso Plano
Marshal. Mas o que se perdeu, material e espiritualmente… Foi
irreversível e irrecuperável. Hoje, esses recursos, desperdiçados
nesses dois surtos de horror e insânia, fazem muita falta à
humanidade.
Concordem
ou não comigo, o facto é que a recuperação europeia se deu quase
que exclusivamente às custas dos países miseráveis – da África,
da Ásia e, sobretudo, da América Latina – de onde foram drenadas
riquezas, sobretudo as naturais, para que os europeus pudessem se
ressarcir dos danos causados por sua própria falta de juízo, de
duas guerras selvagens, estúpidas e sem senso. Os problemas
económicos que afligiam a humanidade naquele tempo, que agravaram os
de carácter sociológico a ponto de os tornar virtualmente
insolúveis, não foram, portanto, resolvidos. Estão aí, para quem
quiser ver, e cada vez mais graves.
É
verdade que o século XIX esteve longe de ser pacífico. Muito sangue
foi derramado, principalmente em solo europeu, com as guerras napoleónicas, os vários conflitos na Rússia, as múltiplas
insurreições populares como a Comuna de Paris, o confronto
franco-prussiano, e vai por aí afora. A China viveu um período de
instabilidade e caos, oportunidade em que Estados Unidos, França,
Grã-Bretanha e Rússia procederam a uma sistemática e continuada
pilhagem nesta que é, sem dúvida, uma das mais antigas civilizações
remanescentes, com cerca de cinco milénios de existência. As
potências da Europa apoderaram-se das comunidades africanas como se
tivessem direito a elas, drenando para seus países os por si sós
escassíssimos recursos desse sofrido continente.
Como
se vê, no tempo de Hofmannsthal o que não faltavam eram problemas:
políticos, económicos, militares e sociológicos. Além do que,
começaram a emergir os de ordem privada, de carácter psicológico,
que hoje competem palmo a palmo com os primeiros.
A
Revolução Bolchevique de 1917, já em pleno século XX, foi uma
esperança, uma alternativa para, senão a eliminação, pelo menos a
redução das desigualdades sociais, principalmente na Rússia. Se
funcionasse ali, certamente seria abraçada por outros povos. Não
funcionou.
Não
tardou para que essa utopia de uma sociedade sem classes, com a
abolição total da propriedade privada, frustrasse os idealistas. O
que na sua concepção original era para ser uma coisa, se
transformou em outra, muito diferente, que nada tinha a ver com os
ideais de igualdade e fraternidade dos seus mentores. Tornou-se uma
férrea ditadura do Estado sobre o indivíduo, e muito mais
intolerável do que o liberalismo cínico do “laissez faire” e
seu selvagem sistema capitalista. Não durou (como não poderia
durar) sequer um século.
Quanto
aos problemas psicológicos (que um amigo muito chegado classifica,
de forma irreverente e até um tanto escatológica de “frescuras de
riquinhos desocupados”), vêm crescendo, de forma exponencial.
Milhões de pessoas mundo afora, no afã de fugir de seus fantasmas e
demónios interiores, recorrem ao álcool, às drogas e a tantos
outros expedientes de fuga, inutilmente. Multidões superlotam os
consultórios dos especialistas (quando não gabinetes de gurus e de
charlatães), em busca de auxílio.
É
certo que quem é afectado por esses males quase nunca é o desvalido,
o pobre, o miserável ou o indigente. Estes já têm aflições de
sobra para garantir pelo menos a refeição do dia. As estatísticas
comprovam, por exemplo, que os mais altos índices de suicídio são
registrados em países ricos – notadamente Suécia, Estados Unidos
e Japão – cujo estilo e, principalmente, qualidade de vida são
invejados por todos os povos. O problema do pobre é, aparentemente,
mais simples: comida num primeiro instante. E, claro, moradia
decente, educação, saúde, segurança etc.etc.etc.

Uma
coisa é certa: as sociedades que aí estão são um fracasso, a
despeito da sofisticada tecnologia de que dispõem. Injustas,
excludentes e preconceituosas, não asseguram relacionamentos sequer
minimamente civilizados entre as nações e, muito menos mesmo que um
arremedo de felicidade para a imensa maioria da população mundial.
Urge, pois, que se encontre (e se concretize) uma nova utopia, de
igualdade, fraternidade e, sobretudo, de solidariedade neste
violento, poluído, judiado e sumamente depredado Planeta. Seremos
competentes para isso?

Por Pedro J. Bondaczuk