UM TRATADO SOBRE OS NOSSOS ACTUAIS DESCONTENTAMENTOS.

13/03/2016 0 Por Carlos Joaquim

O mundo subitamente encontrou-se órfão de Tony Judt. Começámos a ouvir falar deste professor de história, globe-trotter do ensino da história do século XX recentemente. Ele trazia a aura de ser o autor do melhor livro sobre a história da segunda metade do século XX, esse capítulo da nossa vida inda agora mesmo encerrado. E desde sempre era conhecido como um dos defensores de Keynes e do seu legado, em rápida erosão nesta crise global da economia capitalista pós-2008, onde a resposta aos erros do capitalismo dos mercados parece ser apenas mais capitalismo e mais erosão do legado Keynesiano, construido no pós-guerra.
O livro de que falo tem sido inúmeras vezes citado nos últimos anos ou meses, tão rápida vai esta vida e esta corrida para o abismo – o FMI chegou “ontem” a Portugal, por ex…. E Judt morreu o ano passado.
Take one:
“Todos os empreendimentos colectivos exigem confiança. Dos jogos infantis às instituições sociais complexas, os homens não podem trabalhar juntos a menos que suspendam a sua desconfiança mútua. Uma pessoa segura a corda, a outra salta. Uma pessoa encosta a escada, a outra sobe. Porquê? Em parte porque esperamos reciprocidade, mas em parte devido a uma clara propensão natural de trabalhar em cooperação para o bem colectivo.
A tributação é um exemplo revelador desta verdade. Quando pagamos impostos há uma série de suposições que fazemos sobre os nossos concidadãos. Em primeiro lugar, partimos do princípio de que eles também vão pagar os seus, ou então sentir-nos-íamos injustamente sobrecarregados e a dada altura recusaríamos contribuir. Em segundo lugar, confiamos que aqueles a quem conferimos temporariamente autoridade sobre nós irão colectar e empregar responsavelmente esse dinheiro. No fim de contas, quando descobrirmos que eles o delapidaram ou esbanjaram, já teremos tido um grande prejuízo.
Em terceiro lugar, a maior parte da colecta fiscal vai para o pagamento de dívidas contraídas ou para o investimento em despesas futuras. Assim, existe uma relação implícita de confiança e mutualidade entre os contribuintes de ontem e os beneficiários de hoje, e entre os contribuintes de hoje e os receptores passados e futuros – e, claro, os contribuintes futuros que irão cobrir o encargo das nossas despesas actuais. Estamos portanto condenados não só a confiar em pessoas que nunca poderíamos ter conhecido e pessoas que nunca iremos conhecer, com todas as quais temos uma relação complicada de interesse recíproco.”
Take two:
“(…) foram a social-democracia e o Estado-Providência que uniram as classes médias profissionais e comerciais às instituições liberais no seguimento da II Guerra Mundial. Era uma questão com alguma importância: o medo e o descontentamento da classe média é que tinham propulsionado o fascismo. Vincular novamente as classes médias às democracias era de longe a tarefa mais importante que enfrentavam os políticos do pós-guerra – e de forma alguma uma tarefa fácil.
Na maioria dos casos isso foi conseguido pela magia do “universalismo”. (…) era oferecido às “classes médias” instruidas a mesma assistência social e serviços públicos que à população trabalhadora e aos pobres: ensino gratuito, tratamento médico acessível ou gratuito, pensões públicas e subsídio de desemprego. Como consequência, agora que tantas necessidades vitais eram cobertas pelos seus impostos, a classe média europeia descobriu nos anos 60 que o seu rendimento líquido era muito maior que em qualquer época desde 1914.
É interessante que essas décadas se tenham caracterizado por um misto singularmente bem-sucedido de inovação social e conservadorismo cultural.(…) Foram as iniciativas de Keynes que levaram à criação do Royal Ballet, do Arts Council e muito mais. Eram provimentos públicos de arte inquestionavelmente “elevada” – muito à semelhança da BBC de Lorde Reith, a qual se impusera a obrigação de elevar o gosto popular, em vez de condescender com ele.
Para Reith ou Keynes (…) esta abordagem nada tinha de paternalista (…). Isso era a “meritocracia”: a criação de instituições elitistas pazra candidatos em massa a expensas públicas – ou pelo menos garantida pela assistência pública. Ela começou o processo de substituir a selecção pela herança ou riqueza por uma mobilidade vertical através da educação. E poucos anos depois veio a produzir uma geração para a qual essas coisas pareciam óbvias, e que por isso não lhes dava valor.”
Take three:
“A política dos anos 60 evoluiu assim para um conjunto de reivindicações individuais perante a sociedade e o Estado. A ‘identidade’ começou a apoderar-se do discurso público: identidade privada, identidade sexual, identidade cultural. Daqui foi um pequeno passo para a fragmentação da política radical, a sua metamorfose no multiculturalismo. Curiosamente, a nova esquerda manteve-se extremamente sensível aos atributos colectivos das pessoas das terras distantes, onde pudessem ser reunidas em categorias sociais anónimas como ‘camponês’,´’pós-colonial’, ‘subalterno’ e afins. Mas internamente reinava, incontestado, o indivíduo.
Por muito legítimas que sejam as reivindicações dos indivíduos e a importância dos seus direitops, sublinhá-los acarreta um preço inevitável: o declínio de um propósito de vida partilhado.”

Como resolver isto? E como resolver todo este resto em que nos encontramos imersos? Este livro não é demasiado explícito no “como resolver”, nem se calhar lhe devíamos pedir tal coisa. É sim um acender de alarmes sobre a aparente inevitabilidade como estamos a aceitar o destruir de um edifício de estabilidade que tão cuidadosamente se construiu no pos-guerra. Não seria lógico um maior esforço para conservar algo que mais do que um erro os gurus da “nova economia” se apressaram a declarar apenas mais uma… utopia? Claro que, 48h após o desfecho das decisões da troyka,